A Protectora dos Animais ou os Animais da Protectora

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ManelMesquitella
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A Protectora dos Animais ou os Animais da Protectora

#1 Mensagem por ManelMesquitella » terça ago 24, 2010 7:59 pm

A acção passa-se na rua de S. Paulo, no ano de 1930, por uma noite cálida do mês de Setembro. Os beneméritos sócios da conspícua Sociedade Protectora dos Animais tinham resolvido comprar o livro Toiros de Morte, recentemente aparecido nas montras dos livreiros. Cada um deu uma coroa e juntaram desta forma os dez escudos do preço. Levaram-no para a sede da Sociedade e aí oleram, em voz alta, reunidos em sessão magna numa sala apropriada - a Sala dos Chavelhos - em homenagem aos filhos predilectos da Protectora.

Aquela leitura enchia-os de espanto. como é que em pleno século XX, a vinte da mudança de regímen, se podia escrever e publicar uma coisa daquelas ?... Olhavam-se uns para os outros, indignados com tanta irreverência. E a indignação chegou ao auge quando se abordaram os capítulos « Da barbaridade » . Então o Presidente da Assembleia não pôde conter-se, e , desfechando um murro sobre o livro aberto, exclamou com voz trémula e resoluta :

- Isto é uma afronta à consciência humana, aos direitos intangíveis da Inteligência e da Razão ! Vou mais longe meus senhores : afirmo, sob a minha palavra de honra, que considero este livro contrário em absoluto às válvulas mais insignificantes do Sentimento ! Sim porque se Cristo nos mandou amar o próximo como a nós mesmo, nós os sócios da Protectora dos Animais, não nos contentamos com este mandamento acanhado, exclusivista da Lei de Deus : nós na nossa superior inteligência e naquela sede de justiça que nos queima as entranhas, estendemos o nosso amor a todos os seres da Criação, e assim, devemos acrescentar no fogo incandescente do nosso afecto : amar o próximo como se fosse um animal e amar o animal por amor de nós !

- Bravo ! Muito bem ! - gritaram todos, com os olhos cheios de lágrimas e o coração a transbordar de amor aos animais . (Já todos tinham jantado).

O sócio nr.3 , Justiniano Acácio - sobrinho do ilustre Conselheiro do mesmo nome - ergue-se rubro de entusiamo, irradiando chispas da calva lustrosa. Fez-se o silêncio dos grandes momentos. Então Acácio apurou a garganta e batendo com as no peito, murmurou :

- Faço minhas as palavras de V.Exª ! E deixou-se cair sobre a cadeira - estenuado.

Novas aclamações abalaram os ares.

- Peço a palavra ! - trovejou do fundo da sala o sócio nr. 15 - um dos mais modernos, mas dos mais valiosos. Sebastião Trovisco de Araújo Pereira e Lemos de Serzedinho sentira desde o berço uma grande queda para os animais. Era filho do Sr. José Maria e da srª Maria José e a princípio usava só o nome de Sebastião Trovisco, porque o pai , o José Maria, tinha sido mestre de música no Troviscal, Não se sabe como, apareceu um dia, já depois de crescido, sobrecarregado de apelidos, como aqueles fidalgos que Camilo inventou. Tinha neles uma grande prosápia e dizia-se descendente de Nun´Álvares Pereira e primo em terceiro grau do sr. dr. Bernardino Machado. Era democrático, com acentuadas tendências socialistas, emprestava dinheiro a juros e usava anel de brazão no dedo pequenino.

- Tem a palavra o nosso ilustre consócio Sebastião Trovisco de Araújo Pereira e Lemos de Serzedinho - declarou o presidente.

- Meus senhores e minhas senhoras !

- Olhe que não há senhoras, camarada !

- É como se houvesse ! Meus senhores e minhas senhoras ! Matar por prazer, por divertimento, é um acto de ferocidade sádica, que denota, iniludìvelmente, uma psicologia mórbida ou decadente. Matar para arrancar da sociedade o elemento nocivo que a perturba é, pelo contrário, um acto de justiça. Esse tal D. Bernardo da Costa, autor do livro miserável que acabais de ler, é um inimigo da sociedade e da civilização. Eu conheço-o - creio até que ainda é meu parente - e posso afiançar pela saúde de meu pai (que Deus tem !) que ele é uma das mais catastróficas filoxeras que infestam os pântanos da Humanidade. Suprimi-lo, era praticar um o tal acto de justiça de que há pouco vos falei. Temos que o matar, como se mata um cão !

- Perdão ! : o meu caro colega que o cão é nosso irmão e que se não mata - atalhou o sócio nr. 5, Florêncio Secundino, - um senhor muito bem posto, que usava pulseira e camisa cor-de-rosa e que tinha a alcunha de Chica dos Galuchos, em razão do seu amor à tropa.

- Então - volve o orador - que se mate o homem como se fosse uma besta !

- Chamo a atenção de V.Exª - interrompe o presidente - para a circunstância, muito para ponderar, de as bestas estarem de há muito filiadas na nossa Associação...

- Muito bem ! Apoiado ! Apoiado ! - gritam todos de pé e acenando os lenços.

- Retiro a comparação senhor Presidente - emenda Sebastião Trovisco de Serzedinho, limpando a testa, po onde vai escorrendo o suor húmido da eloquência : - Eu não quero melindrar nenhum de nós sejam eles protectores ou protegidos. E por isso proponho nesse caso que se mate o homem assim, com o pé, como se esborracha uma formiga !

- Valha-nos Deus, sr. Serzedinho : a formiga não pode ser - afirma com melancolia o presidente - V. Exª esqueceu-se que sempre esta benemérita sociedade manteve as melhores relações com a formiga, sobretudo com a formiga branca...

- Então abóbora !

E o orador faz sinal que desiste do uso da palavra.

Idalino Timóteo, sócio da firma Timóteo e Gutierrez, Lda (solas e cabedais), ergue-se então da sua bancada, ante a expectativa geral.

Timóteo, tornado grande caçador por indicação do médico para se curar de neurastenia obtida entre os coiros, nunca faltava a uma reunião da Protectora dos Animais. Nunca discursava, nunca abria a boca, mas não era segredo para ninguém que o honrado comerciante da nossa praça era possuidor dum grande, dum imenso talento. Como o Pacheco do Eça, Idalino Timóteo, conservando-se no mesmo silêncio repleto e fecundo, limitava-se a tomar de vez em quando uma notazinha a lápis no livro das mortalhas: - e esta nota, que ninguém via, que ninguém ousava desvendar, era a expressão mais eloquente da sua autoridade incontestada.

- Senhor Presidente, peço a palavra !

Naquela noite ia falar...

E por isso, porque era um caso inédito e porque ninguém duvidava do seu grande, do seu imenso talento, fez-se na sala um silêncio medonho.

Sacudindo a cabeleira para trás, no gesto altivo dum leão na selva, Idalino Timóteo, sócio da firma Timóteo & Gutierrez, Lda (solas e cabedais), principiou :

- Meus irmãos ! Neste «bouquet» de amigos, eu sou certamente a pétala mais ínfima ! (não apoiado !). Mas deixai - ó povos que escutais ! - que eu junte a minha voz às vozes mais eloquentes que nesta sala se ergueram hoje, debaixo da protecção do Supremo Arquitecto e dos chavelhos que ornam gloriosamente estas paredes (apoiado !)

Eu não sou ninguém e nada valho. Mas sinto dentro deste coração (e dizendo isto, Timóteo rasgou a camisa e deixou ver um peito horrendo, onde os cabelos se enrolavam em meadas, ao mesmo tempo que lhe saía para fora o avental do seu grau maçónico) uma ânsia extraordinária de Liberdade, de Paz, de Justiça e de Amor. Cavaleiro loiro do Ideal, eu querocontribuir até à última gota do meu sangue para que a Pátria e a República....

Bravo ! Muito bem ! Viva a Pátria ! Viva a República !

Toda a assembleia, de pé em cima das cadeiras, irrompeu, delirante, numa formidável, numa interminável ovação. Acácio, que tinha adormecido, pôs-se a assobiar baixinho a Portuguesa.

Por fim, Timóteo pôde continuar :

- Já não me lembra o que queria dizer... (Pausa). Ah já sei ! : eu quero contribuir até à última gota do meu sangue para que a Humanidade avance ! (sussurros de admiração). Tenho dito.

Durante longo tempo, Idalino Timóteo foi felicitado, abraçado e beijado por todos os assistentes.

- Foi de arromba ! - declarou o contínuo, depois de cuspir estrondosamente para o escarrador.

Timóteo conseguiu por fim isolar-se num canto, a saborear o seu triunfo e a meter para dentro o avental. Nesse momento, Florêncio Secundino, o da camisa cor-de-rosa, chegou-se ao pé dele e disse-lhe num abraço nervoso :

- Ai filho, que bem que você falou ! Que impressão me fez ! Senti-me tão perturbado, que estive vai não vai para desmaiar...

Então o presidente anunciou que ia encerrar a sessão - e todos retomaram os seus lugares.

- A nossa assembleia congratula-se pelos saborosos discursos que acabamos de ouvire que têm o mérito, entre outros, de mostrar que o nível intelectual dos nossos associados é cada vez mais elevado e mais prometedor.

Sem querer menosprezar ninguém, a Assembleia não pode deixar de dedicar um agradecimento especial ao Exmº Sr. Idalino Timóteo pelo brilho invulgar da sua palavra e pelo que S. Exª representa dentro da nossa sociedade.

Devo também pôr em evidência o apoio que o Exmº Sr. Justiniano Acácio veio dar-nos, com toda a responsabilidade do seu nome ilustre. Nenhum de nós pode jamais esquecer que seu tio, o saudoso Conselheiro Acácio, foi um dos fundadores e um dos mais brilhantes ornamentos desta sociedade.

Por último, refiro-me ao discurso inflamado do nosso nobre amigo Sebastião Trovisco de Araújo Pereira e Lemos de Serzedinho- este democrata exemplar, que, tendo nas veias sangue azul - que digo eu ? - sangue real, não teve dúvida em pôr os seus altos pergaminhos ao serviço das reivindicações populares. O fogo da sua palavra levou-o porém, a fazer aqui uma afirmação de certo modo grave : pedindo a morte para o autor do livro Toiros de Morte, o distinto orador criou-nos uma situação embaraçosa, por isso que nossa sociedade, conquanto seja de socorros mútuos e uma instituição da Maçonaria, ainda não alcançou o previlégio de praticar impunemente o assassinato. Lá chegaremos ! Não me parece, de resto, que seja necessário recorrermos a um extremo tal. A não ser que encarregássemos dessa missão a Liga dos Anarquistas do Sul - essa humanitária Liga que foi nossa aliada em 1927, contra o mesmo D. Bernardo da Costa e outras famigeradas criaturas, que faziam então a campanha dos toiros de morte num jornal chamado A Ideia Nacional, e que nos puseram por sinal, pelas ruas da amargura... Isso porém, será com V. Exas. Eu , como outro, lavo daí as minhas mãos....

Mas parece-me , meus prezados consócios, que a melhor maneira de impedirmos que se matem toiros em Vila Franca será elaborarmos um extenso manifesto, tão grande que ninguém leia, que entregaremos ao Governo e faremos distribuir pelo país inteiro.Vamos colher todas as opiniões ( as que nos sejam favoráveis, está claro ) de todas as pessoas ue encontrarmos às esquinas - tanto as vivas como as já falecidas ; citaremos os nomes de todas as Individualidades em destaque, desde as mais notáveis nas artes, nas ciências e nas letras, até ao Pinheiro Maluco, passando pelo Poeta Sevilha ; e para darmos a este manifesto um cunho intelectual e académico, vamos pedir a um homem de letras - o dr. Júlio Dantas, por exemplo - que nos dê por escrito a sua opinião burilada em frases doiradas, como as ligas das marquesas, e viçosas, como rosas de todo o ano.

- O pior é se o Dantas é a favor dos toiros de morte - ouve-se num áparte.

Ó filho, estás doido ! Com aquele feitio podia lá ser «aficionado» !

. o sr. dr. Júlio Dantas - prossegue o Presidente - está pois, naturalmente indicado. Quem estiver de acordo com o que acabo de propor tenha a bondade de levantar a patinha - a mãozinha digo.

Todos levantaram a mãozinha.

Então o presidente deu as boas noites e encerrou a sessão. Os sócios, saltando por cima das cadeiras, irromperam aos vivas à Protectora dos Animais e aos morras aoas toiros de morte.

- Morram os toiros de morte ! Morram os toiros de morte !

O presidente, que já ia na escada, teve de voltar atrás para tocar a campainha, a chamar a atenção daquela gente :

- Os senhores estão doidos ! Parem lá com isso, seus animais ! Então a gente esteve aqui este tempo todo a protestar contra os toiros de morte e os senhores estão a pedir que morram esses toiros ?! Mas isto é exactamente o que a gente não quer, é que eles morram ! O que a gente quer é que os toiros vivam !

- Pois então, vivam os toiros de morte ! Vivam ! - e todos se precipitaram pelas escadas abaixo.

Na rua passavam uns taxis livres. Os protectores meteram-se neles e puseram-se a percorrer a cidade, aos gritos de « Vivam os toiros de morte ! ».

A polícia olhava-os desconfiada, sem saber se aqueles pândegos estavam bêbados ou se iriam fazer uma revolução... Por fim prendeu-os. Mas reconhecendo que eram inofensivos - deixou-os em paz.

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No dia seguinte , esgotava-se a primeira edição do livro Toiros de Morte..
Do livro : Festa Brava - 1932 - por D. Bernardo da Costa (Mesquitella)
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"FRENTE DE ACÇÃO PRO TAURINA - AGIR E A ATITUDE A TER"

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